INFILTRADO NA KLAN: A NECESSIDADE DE SE DISCUTIR A INTOLERÂNCIA EM PLENO SÉCULO XXI
- Carol Fung
- Jan 27, 2019
- 7 min read
Updated: May 21, 2019

BlacKkKlansman (Infiltrado na Klan), escrito e dirigido por Spike Lee, é um filme de agosto de 2018 que teve seu roteiro baseado na história real de Ron Stallworth, um detetive negro que nos anos 70 comandou uma investigação sobre a Ku Klux Klan. Stallworth se infiltrou na “organização” e se tornou um dos muitos heróis americanos que a história não cita por pertencerem às chamadas “minorias”. O longa, que é estrelado por John David Washington (Stallworth) e Adam Driver (Flip Zimmerman), foi indicado à Palma de Ouro e levou o Grand Prix do Festival de Cannes em 19 de maio de 2018.
Spike Lee prova, através do roteiro, ser um cineasta que tem algo a dizer e que não irá se calar. A história nos faz experienciar uma completa imersão em uma sociedade extremamente intolerante. A partir da visão de um jovem negro que sonhava em ser policial, o filme expõe todo o racismo que transbordava na polícia americana. A cidade de Colorado Springs nunca havia tido um policial negro e na época já haviam sido reportadas diversas denuncias sobre abuso de poder por parte dos oficiais ao abordarem negros por puro preconceito e sem prova nenhuma de que haviam infringido a lei de alguma maneira. Ao entrar para a polícia, Ron Stallworth experienciou diversas ofensas por parte de seus colegas, mas nunca se sentiu afetado pois estava realizando um sonho. Em entrevista à BBC News em outubro de 2017 Stallworth disse "Quando me entrevistaram (em Colorado Springs) me perguntaram como eu me sentiria em um ambiente no qual algumas pessoas tinham uma atitude negativa em relação a negros. Eu respondi que cuidaria dos meus assuntos”.

A trama construída por Lee prende a atenção do começo ao fim com a simples utilização de recursos ligados à comédia. O filme em geral tem um tom irônico que fortalece a critica à supremacia branca e à extrema-direita e faz crescer o sentimento de indignação no expectador. Vivemos tempos muito sombrios e vemos a todo momento lideres que reforçam o discurso de ódio às minorias. Lideres de países influentes voltaram a falar abertamente sobre seus sentimentos racistas, xenófobos, misóginos e machistas. O enredo do filme já é completamente crível por termos a certeza de que não se trata de uma ficção e esse fato se torna ainda mais sólido quando é exibido para um público que está vivendo novamente essa realidade.
Em certo momento do filme há um diálogo entre um policial branco e Stallworth sobre a possibilidade de David Duke (lider da KKK) vir a ser presidente. O jovem negro diz que o povo nunca aceitaria um líder que falasse tantas barbaridades publicamente e o policial retruca dizendo que ele é “muito ingênuo para um jovem negro”. Esse diálogo sintetiza a crítica principal do longa, que traz no final cenas reais dos protestos e ataques realizados pelos grupos de supremacia branca em Charlottesville em 2017 intercalados com discursos do presidente Donald Trump, em que ele não se posiciona contra o ódio.

Um ponto que faz falta no filme é a curva dramática da personagem de John David Washington, que apesar de ser protagonista perde o foco para Adam Driver, que volta para a sua zona de conforto. A curva dramática criada por Driver é tocante a ponto de você comprar a luta de Stallworth pela visão de Flip Zimmerman. É como se o próprio protagonista não conseguisse te fazer acreditar em sua cruzada. Topher Grace dá vida à David Duke e é outro ator que merece ser destacado por sua atuação. Ao final do filme vemos uma gravação de David Duke em que ele declara seu apoio à Trump, a semelhança é assustadora. Grace conseguiu capturar perfeitamente a essência da personagem e trazer para as telas uma atuação brilhante.

O filme se inicia com algumas cenas de Alec Baldwin como Dr. Kinnebrew Beauregard, essas cenas no entanto me pareceram um grande desperdício de um bom ator. Pois, apesar de ter uma ligação à crítica trazida por Lee, não tem muito gancho com a narrativa principal. Laura Harrier, que ficou conhecida por seu papel em “Homem-Aranha: De Volta Ao Lar”, também surpreende pouco em sua construção de personagem apesar de ter um papel importante ao ser o símbolo da luta das mulheres negras contra a opressão.

A escolha dos atores, no entanto, é um dos elementos que fazem o filme ser digno de Grand Prix. Adam Driver ficou conhecido mundialmente pelo seu papel como Kylo Ren na franquia Star Wars, mas possui um histórico incrível. O ator de 35 anos que é formado pela Julliard School of Arts em NY, considerada a melhor escola de artes dos EUA e extremamente concorrida, volta para a sua zona de conforto nesse filme. "Star Wars- O Despertar da Força” foi o primeiro blockbuster do ator que já era um rosto muito conhecido no teatro e no mercado de filmes independentes. O grande potencial de Driver é muito explorado no filme e sua forte presença cênica é o principal fator que o faz ser destaque no filme, que rendeu a ele cinco indicações como melhor ator coadjuvante, incluindo a indicação ao Oscar.
John David Washington não é um rosto muito conhecido, o que ajuda a reforçar a crença de que ele é um personagem que existe na vida real. Muitas vezes quando temos rostos muito conhecidos é mais fácil acreditar que a história é uma ficção. Seria diferente por exemplo se a escolha para o personagem principal tivesse sido Michael B. Jordan, um rosto extremamente conhecido e adorado. O filme perderia um pouco de seu teor crítico e viraria um sucesso de bilheteria simplesmente pelo fato de atrair fãs do ator.
Esse inclusive é um dos pontos que mais me atraem em filmes como Infiltrado na Klan. A maioria das pessoas que buscam assistí-lo realmente está disposta a vê-lo como arte e não puro entretenimento.
As locações utilizadas no filme e o modo com o qual a ambientação é construída ajudam na imersão em uma cidade pequena na qual ainda reina o sentimento de dominação da raça ariana. Desde elementos como casas que estão localizadas em estradas praticamente abandonadas, até as distancias curtas entre a universidade e o centro (mostradas na cena da perseguição), é fácil sentir uma certa melancolia trazida pela sensação de falta de contato com as ideias modernas.
Um outro elemento que ajuda na ambientação são as cores. Se olharmos fotos de artistas dos anos 70, ou mesmo assistirmos videos antigos, veremos exatamente a paleta de cores utilizada no longa. Os tons mais quentes e a utilização de um certo ruído causam uma sensação de que é possível voltar no tempo ao assistí-lo. Chayse Irvin trabalhou um ponto muito interessante na fotografia do filme e que ajuda a criar o clima controverso causado pelo sarcasmo do roteiro. O longa começa com uma iluminação escura e com tons quentes voltados para o laranja e o marrom e a partir de seu clímax os tons começam a clarear e o filme fica mais claro. No inicio do filme inclusive há uma certa dificuldade para enxergar, pois é tudo muito escuro e em uma das cenas mais tensas, que ocorre no final, o tom quente é trazido pelo fogo e todo o resto do plano inclui uma casa branca e uma luz diurna bem marcante.

O enquadramento utilizado nos momentos de tensão também chamam atenção. Uma das cenas mais bonitas visualmente é uma cena em que é enquadrado apenas o olhar de Flip Zimmerman atrás de um capuz da Ku Klux Klan. O Plano de detalhe em seu olhar ajuda perfeitamente a fixar a ideia de que aquilo tudo que estava sendo dito naquela sala era um crime contra a humanidade. Seus olhos marejados em contraste com seu corpo firme contam por si só a história do personagem que precisa se manter dentro de um ambiente hostil para ajudar a destruí-lo.
O filme é uma co-produção QC Entertainment, Blumhouse, Monkeypaw e 40 acres and mule. A ideia de produzi-lo partiu da mente de Shaun Redick em 2015, que ficou comovido após ler a autobiografia de Stallworth. Junto à QC Entertainment ele iniciou a adaptação para o cinema. Após o grande sucesso de “Corra!”, outra produção da QC, eles decidiram se unir novamente à Jason Blum e Jordan Peele para produzir o filme. Em setembro de 2015 Spike Lee foi anunciado como diretor do filme. As filmagens iniciaram em 22 de outubro de 2017 em Ossining, Nova York.
Em abril de 2018 o filme foi selecionado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes, onde estreou em Maio. Seu lançamento nos EUA ocorreu em 10 de Agosto de 2018, data que marcou um ano dos eventos ocorridos em Charlottesville.
O filme arrecadou U$ 3,6 milhões de dólares em seu primeiro dia, e U$ 10,8 milhões em seu primeiro final de semana, ficando em quinto lugar nas bilheterias e marcando a melhor estreia de Spike Lee desde 2006.
Vendido como uma comédia, o longa recebeu uma porção de críticas como a de David Ehrlich que deu ao filme um grau de "B+" e escreveu que é "muito mais assustador do que é engraçado" e "embala tais assuntos pesados e ultra-relevantes na forma de uma noite descontroladamente descontrolada mas consistentemente divertida no cinema.”. O crítico Peter Bradshaw do The Guardian diz que o longa “…responde ferozmente, com desprezo no coração do regime Trump e alegremente paga de volta em sua própria moeda.”
Apesar das críticas controversas, creio que o filme se torna necessário em uma sociedade em que os discursos que antes nos pareciam distantes agora se fazem presentes. Está cada vez mais exposta a volta de manifestações opressivas por parte de grandes líderes e em um momento tão assustador quanto esse é que se faz tão mais essencial a presença da arte como meio de comunicação e informação. A arte crítica é imprescindível no mundo atual. Seja nos Estados Unidos ou no Brasil, a realidade apavora e estamos flertando cada vez mais com a volta de eventos que antes pertenciam apenas às páginas amareladas dos livros de história.

Spike Lee usa sua voz com maestria e atinge com o longa os mais diversos públicos e é exatamente a trama chocante que é construída que nos faz refletir sobre o futuro que merecemos.
Texto escrito por Carol Fung para trabalho de fim de semestre para o curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP)
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