OSCAR 2020 - DEMOCRACIA EM VERTIGEM: OS CONCEITOS EM UM DOCUMENTÁRIO PESSOAL DA NOSSA REPÚBLICA
- Lucas Campos
- Feb 4, 2020
- 9 min read
Updated: Feb 6, 2020

Democracia em Vertigem é o primeiro documentário brasileiro indicado ao Oscar. Muitos não só ouviram falar, mas assistiram, e criticaram (ah como criticaram....) o longa. Entre os que amam e os que odeiam é difícil achar quem não sabe do que se trata. Mas se por acaso você é uma dessas pessoas e chegou aqui desavisado, o documentário trata do momento político brasileiro – partindo da ditadura e dos movimentos de redemocratização, a diretora Petra Costa mistura sua história pessoal e da Nova República Brasileira para mostrar uma democracia que está se fragilizando rapidamente e seu estado pode ser definido em uma só palavra: vertigem
O primeiro aviso dessa crítica é que não vou entrar no mérito político da coisa, não por não achar válido, nem por ser isentão. Acredito que o filme tem muitos méritos técnicos e que a discussão sobre a cinematografia muitas vezes foi deixada de lado para justificar visões políticas. Eu mesmo tenho minhas discordâncias da visão de Petra e gostaria muito de escrever um textão político. Mas na hora de priorizar (se eu escrevesse a tese de doutorado ninguém ia ter paciência de ler) prefiro deixar a discussão GOLPE/IMPEACHMENT pro buteco.
UM DOCUMENTÁRIO PERFORMÁTICO

Muitas das opiniões que ouvi embarcam na onda de criticar o tom do filme: Falta imparcialidade; não há credibilidade jornalística; Não é um documentário de verdade, fora as loucuras Petra, petralha, comuna que nem entram na discussão.
Primeiro, precisamos entender a proposta do filme. Não se trata de um documentário convencional onde o autor se esconde e quer ser imparcial, o gênero mais adequado para classificar o longa seria um Documentário Performático. Pra quem viu o filme, entende na hora. O longa quase lembra uma performance, dos textos poéticos narrados em off, que abusam de metáforas e ironias; Da dança da câmera pela arquitetura vazia de Brasília – A subjetividade é posta no centro, e Petra leva isso ao ponto máximo, entrelaçando sua história com a da Democracia Brasileira.
A primeira vez que vi o filme, confesso, essa forma me estranhou um pouco, parte por não estar acostumado e pela quebra da expectativa por um documentário objetivo (acho que houve um erro na divulgação, que contribuiu para que mais pessoas esperassem um doc tradicional), mas outra parte também por um distanciamento inicial da autora. O filme é o retrato da visão de uma mulher branca e privilegiada, que convive na burguesia com uma rotina favorecida. Isso é fato consumado e indiscutível, mas o que me surpreendeu no decorrer do filme foi a posição que a autora tomou em relação a isso tudo.
Mais fácil seria se esconder, e proclamar-se como uma voz do povo, mas ao invés disso, Petra reconhece seus privilégios, desnuda sua família e demonstra uma consciência de classe gigantesca. Tive a honra de assistir o longa numa sessão em que ela estava presente, e talvez ter visto toda aquela cara de privilégio da diretora antes do filme tenha me levado para essa sensação. Como se não bastasse a abordagem da diretora no filme, o que ainda restava de distância foi por água abaixo no momento do debate. Foi ela abrir a boca e fiquei encantado com sua visão política, com sua formação e além de tudo a consciência em relação a sua posição e ao sistema. Agora, na segunda vez que vi o filme, mais distante dessas primeiras emoções, pude compreendê-lo melhor. Mais acostumado com a forma, e sem uma falsa expectativa, fica impossível falar em distanciamento.
A forma como Petra mescla sua história pessoal com a história da Nova república é primorosa. Não só em questão de roteiro, mas o ritmo posto na montagem, intercalando os momentos familiares da autora, com o objeto/tema são sensacionais. Petra mergulha em sua família e mostra como a contradição dentro dela revela também a contradição do Brasil. Da parte rica dona de uma construtora, que inclusive se envolve na lava jato, até seus pais militantes da época da ditadura, presos e torturados, Petra evidencia os dois lados que vão se tornando, cada vez mais, atores inconciliáveis.

Comparar sua família ao país, uma escolha prepotente? Eu diria ousada, pela exposição a que ela se submete, mas acredito que o aprofundar no específico de sua família, aliado com técnicas brilhantes de roteiro, aproxima o espectador do que está sendo contado.
Petra trabalha o tempo todo com o específico, dos depoimentos das faxineiras do Palácio da Alvorada, ou do povo de uma praça qualquer de São Paulo. A história de sua mãe, ou de Dilma relatando sua vivência na ditadura. A ideia é explorar o singular, e retratá-lo de tal forma que cause empatia e reconhecimento por quem assiste. Essa talvez seja a chave para o ponto que acho mais primoroso do longa: a capacidade de gerar emoção.
ASPECTOS NARRATIVOS
Acredito que essa talvez seja a maior força do cinema e um objetivo comum em vários diretores: Emocionar o público. Do que vale um filme sem alguém para ver e além disso, alguém para sentir a história? Em Democracia em Vertigem eu sempre soube de onde essa emoção vinha: Ferramentas narrativas de roteiro, expressão também do documentário ensaístico, mas que na primeira vez que vi, não ficaram nomeadamente claras. Me comprometi então a assistir o filme mais uma vez para escrever essa crítica, e fui buscar atentamente cada elemento utilizado pela diretora/roteirista para causar emoção. Fui seguindo cena por cena, como chamamos em roteiro, beat por beat, para no final entender perfeitamente porque o filme funciona. Por mais que me esforçasse, e até tivesse deixado um caderninho do lado para fazer anotações, ao passar do filme fui esquecendo da minha tarefa e me envolvendo completamente na narrativa… Hora que me dei conta, lá estava eu, de novo com lágrimas nos olhos, no mesmo momento que na primeira vez... Lula dizendo: Eu vou me entregar. As pessoas choram, as pessoas imploram, as pessoas gritam... as pessoas derrubam o portão pelo qual o carro dele sairia: “Cercar, Cercar e Não deixar prender”.
Pode não parecer mas aí está a primeira característica de um roteiro bom: Ele joga com sua mente com ferramentas que você pode até conhecer conscientemente, mas em algum momento, ele te sequestra e faz você esquecer de todo o resto, o que importa é o que está ali na tela e só o que está na tela.

Um ponto importantíssimo da narrativa é o famoso show not tell. Apesar de abusar do voice over narrando o filme, Petra continua mostrando os acontecimentos. Por exemplo, Lula sendo carregado pela multidão até a sede do Sindicato ou a cena que acabei de descrever dos manifestantes empurrando o portão para que ele não saia. Nada disso é substituído por um “As pessoas não queriam que Lula fosse preso”. A narração é uma ótima alternativa para conduzir a história, em um gênero onde simplesmente não se pode mostrar o que quiser. Acredito sim, que às vezes ela é um pouco excessiva e didática, quase um show and tell, mas isso vêm um pouco da busca por filme internacional que a diretora se dispôs. Talvez essa seja uma das raras críticas que tenho ao filme. Na busca desse caráter universal a narrativa patina e às vezes sobram umas gorduras (além de discordar ideologicamente da produção pensada no estrangeiro, mas isso é papo pra outro textão). Entretanto, ao mesmo tempo, não é a toa que ele foi indicado ao Oscar. Essa abordagem é muito importante para o sucesso de distribuição tanto fora quanto dentro do Brasil.
Outro princípio de roteiro que caminha no mesmo sentido é se manter o máximo visual possível, fato consumado em Democracia em Vertigem. Por exemplo, a cena da posse de Dilma Rousseff, onde Temer está isolado e distante, pode parecer uma comparação distante para alguns, mas esse fato ilustra muito bem o governo petista no momento da posse de Dilma, e a fragilidade da aliança com o PMDB. Além disso, essa imagem é muito forte e se fixa, mesmo que no inconsciente, mais facilmente nas nossas cabeças. (esse é um ótimo exemplo onde é usado um “show and tell” com êxito, no qual a narração potencializa a imagem sem substituí-la).

Outro ponto primordial na hora de se contar uma história é o ritmo, tanto da montagem, quanto da tensão no espectador. Nesse ponto, a edição entra em peso, na medida que só foi possível estruturar o filme depois das gravações. No debate em que estava, inclusive, Petra contou que a intenção não era chegar até a posse do governo Bolsonaro. Enquanto pensava se devia continuar ou não depois do Golpe, o rápido desenrolar do caso Lula mostrou que era necessário ir até o fim dessa história, porém, ela achava que esse seria o final do filme. Se prestarmos atenção podemos inclusive perceber o salto cronológico entre a prisão de Lula e a posse de Bolsonaro (que descobri não ser tão intencional assim). Petra contou que depois da vitória de Bolsonaro nas eleições ficou claro na cabeça dela a estrutura em atos que vemos no documentário, mas que se associa tradicionalmente a filmes de ficção.
Além dessa estrutura macro, o que sustenta o filme é a contradição – entre correntes políticas opostas, mas também entre tensão e relaxamento; entre a história familiar e a história nacional. Essa é outra máxima de roteiro muito bem aplicada no filme. Não é preciso ser um gênio para pensar em alternar uma cena de uma manifestação a favor e contra o impeachment, mas a equipe não para aí e envolve também outras áreas da produção nesse princípio narrativo.
OUTRAS ÁREAS DE PRODUÇÃO
A Fotografia é magnífica. Desde os enquadramentos inovadores para depoimentos; a variação de câmera na mão em momentos tensos e a câmera estabilizada em momentos tranquilos; A genialidade nas imagens aéreas de drones, tudo isso é lindo, porém habitual. O que mais me chamou atenção foram as “imagens de cobertura” que ela usa. A alternância entre a arquitetura moderna de Brasília, e cenas que mostram a corrupção em várias formas. Em cut aways* (corte brusco que se destaca pela oposição temática) precisos da montagem o filme mostra a contradição entre a democracia pensada, e a democracia prática, em vertigem. Em outras palavras, uma oposição entre o plano perfeito, que mostra como a democracia Brasileira é bem planejada ao redor da constituição, e a realidade, corrompida pelos políticos.

Esse recurso não é apenas pensado na fotografia e na montagem, mas o conceito de simetria é potencializado com um Design de Som primoroso, que soma à arquitetura moderna e o enquadramento simétrico, a música clássica. Criando com isso além da ideia do “perfeito” e planejado, a ideia de calma e sossego (talvez inércia? ). Ao mesmo tempo esse fruto do erudito definitivamente não é um espaço popular e talvez a melhor mostra disso é em um take na Câmera onde deputados discutem fervorosamente e a música clássica, dissonante, gera um série de emoções no espectador.
Além disso, a Edição abusa do corte de som dessincronizado da imagem (L cut e J cut), isso para manter um bom ritmo, e apoiar momentos de tensão. Outro destaque é a mixagem de som, que apresenta um trabalho dificílimo de equalização, mixagem e masterização. Vários áudios vindos de diversos aparelhos, com diferentes qualidades sonoras. A edição deste documentário deve ter sido pra lá de caótica e complexa, e mesmo assim, foi cuidadosa o suficiente para não ser apenas técnica, mas pensar em conceitos que pudessem ajudar a narrativa.
Por último, mas definitivamente não menos importante, vem um grande elogio à Produção do longa. As imagens que Petra conseguiu, retratando momentos históricos de forma perfeita técnica e conceitualmente, merecem uma salva de palmas de todos os presentes no Oscar 2020. Além disso, o acesso que ela teve a figuras importantíssimas em momentos chave é um feito pra lá de significativo. A conversa de Lula com Dilma antes de tentar assumir como ministro; Um take de dentro do carro que conduz Lula na saída do Sindicato dos Metalúrgicos no momento de sua prisão. Um outro take de Lula discursando ainda no início da carreira, nervoso, fumando um cigarro antes de enfrentar a multidão com o seu jovial cabelo preto. Poderia ficar aqui até amanhã citando momentos, em que só passa uma coisa por minha cabeça: “Com que diabos eles conseguiram essas imagens?”

Quando termino de ver um filme penso muito nos conceitos que ele expressa e na emoção que ele me traz. Além disso, penso como a linguagem cinematográfica me traz isso de uma forma representativa e que me deixa pensando: “esse filme só poderia ser desse jeito”. Democracia em Vertigem é assim, não imagino um filme sobre esse assunto de outra forma, como um documentário tradicional. Também não imagino um documentário performático sobre esse tema funcionando tão bem com uma subjetividade diferente da de Petra. Seus privilégios, que discuti anteriormente, possibilitam a ela os recursos financeiros e de acesso às pessoas para fazer um filme como esse. Ela aproveita isso, reconhece os privilégios e os utiliza para fazer uma obra prima.
Uma coisa é fato, gostem ou não do filme, é um feito importantíssimo um documentário brasileiro dirigido por uma mulher ser indicado ao Oscar, ainda mais discutindo política atual. Já tinha achado brilhante a proporção que o filme alcançou e como a distribuição extensiva da Netflix fez discussões aflorarem. Se ele merece ganhar o Oscar? Não sei, mas só o fato de ter sido indicado e por isso trazer a discussão política de volta para os holofotes é sensacional. Definitivamente ele tem técnica suficiente para que o prêmio seja justificável. Se Academia vai dar um prêmio para um filme não-estadounidense fora da categoria de filme estrangeiro? Essa é outra pergunta. Acho que só o feito de ter sido indicado já vale muito destaque, e se ganhar então… é lucro.
E você, o que achou de Democracia em Vertigem? Deixe seus comentários sobre o filme e suas apostas para o Oscar! Confira o trailer do filme abaixo.
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