O IRLANDÊS: É PRECISO RESPEITAR A "VELHA MÁFIA" DE SCORSESE
- Luís Henrique Franco
- Nov 28, 2019
- 8 min read
Updated: Nov 29, 2019

Martin Scorsese é um grande diretor, que ficou muito conhecido por seus filmes de gângster e sobre as ações da máfia italiana nos Estados Unidos. De Bons Companheiros a Cassino e chegando até Os Infiltrados, o diretor criou verdadeiros clássicos para um gênero que praticamente ganhou vida através de seu trabalho. E, como geralmente acontece com todos os gêneros de cinema, após vinte anos de filmes dentro de uma mesma fórmula, a temática pode se tornar cansativa e parecer como um porto seguro sem muito mais para explorar. Mas então, Scorsese lança O Irlandês, seu filme em parceria com a Netflix, e praticamente revive o gênero que ele ajudou a criar e mostra como extrair o melhor de uma fórmula que ele praticamente moldou com suas próprias mãos.
Com 3h25min de duração, e uma trama lenta, sem muitas explosões ou cenas realmente dinâmicas, O Irlandês não é um filme fácil de se assistir, adentrando nas partes mais intrínsecas da organização mafiosa italiana durante seu auge de poder nos anos 50 a 70, quando quase toda a Costa Leste servia aos chefões do crime. Logo no começo, somos apresentados a Frank "O Irlandês" Sheeran, que narra sua ascensão nesse meio, começando como um simples motorista de caminhão e membro de sindicato. Um dia, Frank conhece Russell Bufalino (Joe Pesci), um dos grandes mestres da máfia e o homem responsável por negociar entre membros da organização e manter tudo funcionando em seus negócios. Empregado por Rus, Frank passa a fazer outros tipos de serviços além de dirigir caminhões, e logo se torna um conhecido agente para realizar os trabalhos sujos da máfia, ou como ele mesmo diz, "pintar paredes".

Logo na primeira parte do longa, Scorsese cria um ambiente extremamente detalhado e faz um uso excelente de uma narrativa mais demorada para especificar todos os pontos do funcionamento do mundo do crime. Logo ficamos sabendo qual o papel de Rus e de Frank em uma longa teia de relacionamentos, quem são os grandes chefões, a quem cada um se dirige, como os trabalhos precisam ser feitos, com que rapidez e em que tipo de lugar. Ao mesmo tempo, é mostrado o progresso de Frank como um homem de total confiança dentro da organização, ao mesmo tempo em que sua família se vê severamente afetada por seus trabalhos.
Quando a primeira parte é finalizada, somos introduzidos ao que realmente moverá a trama a partir de então. Aos 40 minutos de filme, aproximadamente, entra Al Pacino no papel do líder sindical Jimmy Hoffa, uma figura de extrema importância no cenário estado-unidense da época. De acordo com a narração do próprio Frank, "nos anos 50, ele era maior que o Elvis. Nos anos 60, era maior que os Beatles" (toda essa fama é colocada em uma balança pelo próprio filme ao apontar que, hoje em dia, ninguém lembra quem Hoffa foi). A partir daí, a trama é conduzida pela dualidade na vida de Frank: de um lado, a amizade dele com Hoffa, do outro, seu compromisso com Russell e a máfia. Não muito aparente a princípio, tal dualidade vai se tornando mais e mais aparente à medida em que os desejos da máfia e do líder sindical deixam de se alinhar, forçando Frank cada vez mais para um momento onde ele será forçado a escolher um lado.
A INFLUÊNCIA DA MÁFIA EM TODOS OS ASPECTOS
Se Scorsese sempre teve a capacidade de adentrar no submundo da máfia italiana e mostrar todo o seu poder, especialmente na região da cidade de Nova York, em O Irlandês ele parece ir mais a fundo nessas questões e realmente coloca à vista o quão longe ia a influência dos grandes chefões. Sempre nos é colocado que, por mais eficiente que seja, Frank é apenas mais um peão dentro de uma rede complexa que atinge negócios, estradas, polícia, juízes, sindicatos e até mesmo políticos de alta escalão. É nos sindicatos que a análise do diretor chega mais fundo, deixando à mostra a maneira como as organizações trabalhistas atuavam em conjunto com os mafiosos e conseguiam ser influenciadas e, mais do que isso, influenciar grandes organizações de poder nos Estados Unidos.

Scorsese praticamente coloca um dedo na ferida ao apontar relações entre sindicatos e mafiosos com políticos de grande poder na época e mostrar a influência desses grupos em decisões político-econômicas da época, com destaque para acontecimentos durante o governo Kennedy (especialmente o evento da Baía dos Porcos) e durante a era Nixon. Em suma, praticamente tudo era controlado pelo mesmo grande grupo e nada passava despercebido por eles. Chega a ser assustador a maneira como esses personagens demonstram total controle, mesmo quando colocados contra grandes políticos (exemplo dado claramente pela forma como Hoffa ataca o procurador-geral Robert Kennedy).
Ao mesmo tempo, Scorsese busca demonstrar, em um arco menor do filme, que talvez pudesse ter tido maior destaque, a forma como tal poder influenciava nas famílias dos envolvidos. O conflito entre Frank e sua filha Peggy (vivida por Lucy Gallina e por Anna Paquin) é apontado em vários momentos e vai ganhando maior repercussão conforme Frank vai se tornando mais importante dentro da máfia. Infelizmente, a mesma relação problemática é raramente vista no restante da família e só é apontada em uma cena no final, quando outra filha diz ao pai sobre como o medo da reação dele as impedia de conviver com ele e trazer os problemas delas para ele.

UMA AULA SOBRE RITMO NARRATIVO
As 3h25min podem ser assustadoras a princípio. Na verdade, Scorsese parece ter muito orgulho dessa longa duração, pois O Irlandês não tem nada que a faça parecer mais rápida. A construção de cada cena é lenta e detalhada, o desenrolar das ações é feito em um ritmo bem comedido e mesmo as cenas de maior tensão ou de violência são tratadas com uma calma de mestre e deixam de lado o efeito explosivo que poderiam ter. Construir tensão de uma maneira lenta é algo que outros diretores já fizeram e ainda fazem, com Tarantino podendo ser citado como um dos mais atuais. Scorsese, porém, não chega nem perto deles, porque a sua construção lenta não leva a um final explosivo, a uma grande cena de violência exagerada.
Tudo em O Irlandês possui uma sutileza extremamente inteligente, que nos fazem atentar para algo além da violência física de tiros, estrangulamentos e gritarias. Em meio a essa calma, somos forçados a atentar para uma violência escondida desse meio: uma força que se mostra por meio da lealdade, dos laços de fidelidade, das escolhas a serem tomadas, do silêncio, dos favores, da corrupção em todos os setores. Tudo isso sempre foi mostrado em filmes de máfia, mas nesse longa temos uma nova dimensão sobre essas questões, onde se aborda muito mais do que as consequências de uma escolha, mas o peso que se deve carregar por ser leal a um homem ou a um grupo de homens. Se existe uma palavra para definir esse filme, é "lealdade", lealdade e o peso dela em todos os momentos da vida de uma pessoa.

E mesmo com esse desenrolar mais lento, O Irlandês não é desprovido de uma grande tensão. Ela só não é tão visível a princípio (mais precisamente, durante talvez a primeira hora do filme). É uma tensão que se sustenta nas diferenças de visão entre Hoffa e a máfia, e quase não a notamos até que essas diferenças se tornam problematicamente aparentes. E nesse momento, o público pode seguir dois caminhos diferentes: ele pode simplesmente assistir o filme acreditando que a "parte importante" da trama finalmente começou e que a hora inicial foi apenas uma grande exposição histórica sobre a máfia italiana nos Estados Unidos; mas, se você realmente presta atenção com um olhar analítico, percebe que essa tensão é construída desde o primeiro minuto, desde a primeira cena de Frank, desde o encontro dele com Russell. Se você for capaz de ver isso, perceberá que é algo que nunca para de crescer até culminar no clímax do filme, uma cena que nada tem de explosivo, mas que carrega dá muito mais tensão, ansiedade, excitação que qualquer desfecho de filme de ação, qualquer cena da Marvel ou qualquer resolução de bang-bang de Tarantino.
Com base em tudo isso, é triste analisar o público do cinema atual e constatar que, apesar de ser o maior triunfo do filme e seu aspecto mais importante, o ritmo demorado e de crescimento sutil do filme talvez venha a ser o ponto mais criticado do mesmo pelo público.
A CONFIANÇA EM UM ELENCO VELHO

Outro ponto de grande força no filme é o seu elenco, composto em sua maioria por atores velhos e de grande experiência ao lado de Scorsese. O diretor não poupou esforços para reunir sua velha máfia, e provou o que é capaz de extrair desses grandes atores, mesmo depois de tantos anos.
Robert de Niro sustenta um protagonista extremamente forte ao longo de toda a narrativa e premia seu público com uma atuação maravilhosa que vem como um alívio gigantesco para aqueles que, nos últimos anos, tiveram que se acostumar com o ator fazendo papéis menores em comédias bestas e filmes irrelevantes. Apesar desses contratempos, De Niro retorna à sua antiga forma e consegue reviver o grande ator e o grande mafioso pelo qual muitos o conheceram ao longo dos anos.
O maior destaque, porém, vai para o elenco coadjuvante. Joe Pesci e Al Pacino renascem das cinzas e vivem duas atuações de tirar o fôlego e completamente diferentes entre si. Por um lado, temos um Pacino extremamente vivo e que rouba a atenção para si em cada cena, representando um eufórico líder sindical com um discurso agressivo e vivaz, o qual ele interpreta com destreza fenomenal. Do outro lado, para a surpresa de muitos, Joe Pesci vive um personagem extremamente diferente de outros em sua carreira ao lado de Scorsese. Quem cresceu vendo um Pesci rabugento e brigão em Os Bons Companheiros e Cassino, por exemplo, se surpreende com um novo personagem, bastante comedido e reservado, extremamente frio e paciente em suas decisões. Talvez parte disso se deva à idade avançada do ator, que já não tolera mais as explosões de antigamente, mas o novo Pesci é ainda mais soberbo que o antigo e ganha presença com um ar que, mesmo comedido, não deixa de ser ameaçador em certo sentido, quando associado à sutileza da trama.


Entre outros atores presentes, estão o também veterano Harvey Keitel, que recebeu um papel bem menor no enredo, mas que não deixa de ter sua força marcada, Bobby Cannavale, que parece a princípio ser bem mais importante do que acaba sendo no final, e Anna Paquin, em um papel de certo destaque, mas que talvez pudesse ter tido mais atenção da narrativa.
Ao trazer esse elenco, composto por seus mais velhos companheiros de filme, Scorsese parece fazer uma imensa homenagem aos filmes de máfia, reconhecendo sua evolução ao longo dos anos, assim como seu envelhecimento. Não à toa, todos os personagens parecem sentir, em determinado momento ou outro, o peso da idade de seus atores, e Scorsese trata essa questão com absoluto respeito pelo passado de cada um, levantando importantes pontos sobre envelhecimento e esquecimento, tanto para os atores reais quanto para os filmes. O que se vê em O Irlandês não é uma tentativa de reviver o gênero, mas talvez um reconhecimento do diretor de que esse tipo de filme não tem mais o sucesso que já teve e que agora, está começando a ser esquecido, da mesma forma como os personagens da trama vão, aos poucos, morrendo e sendo esquecidos.

CONCLUSÃO: UMA OBRA-PRIMA DE QUEM SABE O QUE FAZ
O Irlandês se finca fortemente na fórmula adotada por Scorsese em todos os seus filmes de máfia e se segura bem nela, apresentando inúmeros elementos já conhecidos por seus grandes fãs. Há quem possa alegar que isso faz com que o filme seja mais do mesmo, mas é justamente na exploração dessa fórmula que o diretor se sobressai e mostra que ele sabe muito bem o que está fazendo, conseguindo extrair mais do que qualquer um poderia esperar e, diante de uma narrativa já conhecida por seus fãs, apresentar algo novo e que atrai o espectador.
Certamente não é um filme para todos os públicos, mas aqueles que se disporem a assisti-lo terão uma experiência única, que só um diretor de renome como Martin Scorsese é capaz de fornecer.
O Irlandês já está disponível na plataforma de Streaming Netflix. assista ao trailer abaixo!
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